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Histórias globais, vozes locais

Walid Hajar Rachedi

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Photo de Walid Rachedi

Aos 21 anos, Izadora não é mais a menina que sua irmã Fabiana resgatou de um afogamento em um dia de verão . Desta vez, ela está se jogando por conta própria: os exames de admissão para uma universidade de prestígio na Zona Sul. O fim do mundo para Iza. Especialmente quando a favela onde ela mora está sob as águas.

Izadora não se lembra quantos anos tinha quando viu o mar pela primeira vez. Seis ou sete anos. Um dia de verão em meados dos anos 90.

Mas ela se lembra muito bem desse deslumbramento intenso, infinito. Do sol que ela sorveu. Com seus olhos ou lábios. Ela já não sabe mais. Acreditava que conhecia esse sol carioca… Ela só conhecia o seu lado vingativo. Sua encosta Oeste. Aquele que bate no asfalto e nas cabeças, te morde sem remorso de novembro a fevereiro, te sufoca naqueles longos trajetos de ônibus pela Avenida Brasil… Seu lado mais brando, encosta Sul, ela descobriu naquele dia: ele se guarda para aqueles corpos flexíveis, dourados, triunfantes de vida, estendidos sobre essas faixas brancas, Copacabana, Ipanema… Que Izadora pisa timidamente com seus pés cor de caramelo.

— É açúcar?

Com a pergunta, seu pai riu uma risada poderosa, quase tão intensa e infinita quanto o sol que ela não conseguia parar de beber. Mas não, é areia, minha princesa pretinha! A areia mais bonita do mundo, a da nossa maravilhosa cidade do Rio de Janeiro. Com sua cerveja Brahma fora do cooler, ele é agora o homem mais feliz do mundo. Quase se permite a nostalgia: Quando tinha a sua idade, eu morava aqui perto, você sabe… Com os amigos, descíamos o morro aos domingos para nos banhar. E então, todos tivemos que nos mudar. Depois do incêndio.

Sua mãe está ocupada demais montando o que parece ser um acampamento para se entregar à maravilha. Nesse território, ela não terá delimitado seu espaço, enquanto suas filhas não estiverem como convém – cabelo, roupa de banho, o som de suas vozes… sem mostrar nada de mais , nada a menos – a mãe se sentirá um certo mal-estar, meio cercada. Ela vai manter em seus ouvidos o zumbido dessas observações que lemos num olhar, num sorriso muito profundo. Como aqueles das donas de casa da Zona Sul que sempre criticam a forma como a mãe de Izadora exerce suas funções de empregada.

Sua irmã, Fabiana, com sua falsa confiança de adolescente impetuosa da Villa Kennedy, domina a praia com um único olhar, despreza aqueles para quem é óbvio estar aqui, abranda a mãe em seu ardor de conformidade, tempera o entusiasmo do pai com um pop brasileiro que flerta com o funk da favela: 

Rio 40 graus / Cidade maravilha / Purgatório da beleza / E do caos 

Sim, Izadora quer beber todo o sol daquele dia. E todo o mar também. Seus pais estão morrendo de medo. Escapando de sua vigilância por um momento, o caos prevalecerá sobre a beleza. Fabiana mergulha sem pensar, pescando-a do fundo da água. Faz com que ela cuspa todo o sal do mar e de sua inocência. Ninguém lhe tirará sua irmã. 

***

Abril de 2009. Já faz muito tempo que Izadora não é mais uma criança.

Ela acabou de fazer 21 anos.

Mas ainda hoje, ela gostaria de beber todo o sol da encosta Sul.

Último dia de vestibular, provas finais de admissão para essa renomada universidade da Zona Sul, é agora ou nunca... Dessa vez, tem que dar certo.

Foco. Força. Fé.

Ela está se preparando para isso há três anos.

Acompanhou o curso de pré-vestibular comunitário do professor Costa, acumulou noites sem dormir estudando, trabalhou em empregos mal pagos para economizar dinheiro, preencheu todos os formulários possíveis para bolsa de estudos, enviou todas as justificativas... – É uma loucura a quantidade de papéis que devem ser preenchidos para provar o que as pessoas não param de jogar na sua cara… E as festas? Desistiu de inúmeras festas, oportunidades de diversão, rapazes com bocas bonitas, sem falar no resto…  

Mas agora ela está de volta ao ponto de partida: está presa na encosta oeste.

Ontem o Rio chorou todas as lágrimas de seu corpo. Casas desabaram nas colinas da Zona Oeste, da Zona Norte.

Alguns perderam tudo. Seus pertences, a vida.

Izadora não dormiu a noite toda, o barulho da chuva em seu telhado de zinco, explosões quase tão assustadoras quanto o eco daqueles tiroteios em que soldados adolescentes magros como as solas de suas Havaianas disputam o domínio de um território, de um negócio, de um meio de sobrevivência…

De manhãzinha, as paredes ainda estão lá.

De sua janela, o espetáculo irreal de um barco. Os bombeiros se amontoam nele. Ela percorre as ruas da favela Vila Kennedy. Rua Zâmbia, Rua Sudão, Rua Congo, Rua Camarões… A África não é mais apenas um lugar fictício ligado a nomes de ruas, pois invadiu seu bairro na forma de pequenos rios vermelhos e lamacentos. , ...  

Tão indesejável a África.

Uma associação mental extraída das reportagens que acompanhamos nos intervalos comerciais durante o Domingão do Faustão e outros programas deliciosamente entorpecentes, fez a sua mãe dizer, com voz ingênua: “Não estamos indo tão mal aqui, afinal... Deus abençoe o Brasil”, e Fabiana, responder secamente: “Na frente da TV deles, bem ali, talvez digam a mesma coisa de nós...”

Dos pequenos rios vermelhos que dão forma à outra parte de suas angústias: o tráfego de ônibus é muito complicado na Zona Oeste. Há engarrafamentos de trânsito monstruosos onde os carros podem circular.

Izadora sente sua respiração ficar curta, uma linha de dor se estendendo da testa até a nuca.

Morrer. Por um momento, ela gostaria de morrer. Só por um momento. Morrer para não mais ter que pensar.

Foco. 

Força.

Fé. 

Foco. 

Força. 

Fé. 

Foco. 

Força. 

Fé. 

Ela repete compulsivamente para não entrar em pânico.

Na parede da sala, uma foto de seu falecido pai tenta tranquilizá-la. No quarto, sua mãe murmura bênçãos. Jesus pode tudo, creia nele. Na tela do celular, Fabiana não espera por ele. Como ontem, ela traça um plano para tirá-la da água: “Te encontro na Praça Miami, em frente à estátua.”

Mas como descer a rua sem acabar com as pernas encharcadas? Ela mal tem tempo de se perguntar quando batem na porta. É a vizinha: “Fabiana me falou que você ia precisar disso...” O marido dela é gari. Ela lhe entrega um par de botas de plástico, que ele mantém de reserva. Izadora fica confusa ao agradecer. A vizinha a repreende gentilmente: “É Deus quem dá.”

Ela as coloca como pernas de pau, consegue a descer a rua sem cair.

Abaixo, uma voz masculina zomba:

– Patricinha Kennedy… Que abordagem, um verdadeiro desfile! Onde você vai assim, para a universidade ou para a fashion week?

– Edilson, o que está fazendo aqui?

O jovem vestindo uma camiseta de futebol vermelha e pretoa– Flamengo, é claro – com um sorriso tão largo quanto seus ombros, retruca:

– O que você acha? É sua irmã e sua cabeça dura. Ela não pôde vir… Me mandou… E a van do meu tio também! Parece que ela nunca ouviu um “não” na vida!

O bom humor de Edilson é contagiante. Izadora sente sua dor de cabeça dissipar. Eles caminham em direção ao veículo. No centro da praça atrás da qual Edilson estacionou, ergue-se sobre um monte de concreto, no meio de uma quadra, a Estátua da Liberdade, réplica de sua prima nova-iorquina. Um recinto dentro de um recinto. Com o vestido coberto de grafite, ela parece mais triste nesse dia chuvoso. Izadora para por um instante. Edilson, dando um grande golpe na cerca para tirá-la do devaneio, comenta, zombando:

– Colocaram barras ainda mais altas, ficaram com medo que ela fugisse também!

Izadora sorri para qualquer resposta.

Ela se lembra daquele dia, há três anos, em que caminhou pelo bairro com o Professor Costa e os outros alunos do pré-vestibular, como se o tivesse descobrindo pela primeira vez. 

O doutorando em História que iniciou o programa para ajudar os jovens da comunidade a ter acesso à universidade, bem antes das políticas institucionalizadas pelo governo Lula, fez questão de contar a história do bairro. Dizia a lenda que esse doutorando de trinta anos, filho de serventes emigrados do Nordeste, havia aprendido a ler só. Como uma espécie de Cristóvão Colombo que descobriu um novo continente de conhecimento remando sozinho. Foi Fabiana quem lhe contou isto no tom de um conto. O professor foi de fato a única pessoa que sua irmã havia falado com tanta devoção. Uma figura tutelar que inspirou Fabiana em sua vocação de professora e em seus diversos compromissos na comunidade. Mesmo Jesus não tinha direito a tais favores. Sua mãe desconfiava dele. Ele não acredita em nada além de si mesmo, disse ela. Ela teria preferido que sua ação fosse supervisionada pela paróquia do Pastor Eraldo. Mas enfim… Ela não podia negar a eficácia de seus métodos: Fabiana foi a primeira pessoa da família a ter diploma de universidade. Deus entenderia.

Em frente à estátua da liberdade, o professor perguntou aos estudantes se eles sabiam porque seu bairro se chamava “Vila Kennedy”. Silêncio na plateia. Todo lugar tem uma história, não sabermos de onde viemos, é renunciar à metade de quem somos. Sua apresentação estava repleta de tais máximas que Izadora se perguntou se o professor as havia inventado ou se as tirou de um livro... Então ela soube que seu bairro havia ganhado esse nome em homenagem ao então presidente americano, John Fitzgerald Kennedy, morto dois meses antes da posse. Ele foi assassinado em seu carro, comenta um dos estudantes que aparentemente ouviu falar dele em um filme sobre uma loira bonita, uma estrela... No contexto da Guerra Fria, após a revolução cubana, seu programa “Aliança para o Progresso” teria sido lançado para financiar vários projetos na América Latina com o objetivo de “frear o avanço do comunismo”.

Ao tom do professor, Izadora não soube dizer se considerava aquilo como uma coisa boa ou ruim… Enfim, o certo é que o governador do Estado, Carlos Lacerda, considera a operação um grande sucesso: 5.509 unidades habitacionais com água potável, luz e esgoto, ruas, praça… Um verdadeiro luxo, avaliou, para os ex-moradores das favelas da Zona Sul. Aos espíritos tristes que argumentavam que os moradores haviam sidos despejados à força, e que a localização – duas horas e meia de transporte do centro da cidade – arriscaria dificultar o seu dia-a-dia, o governador retrucou: Este é apenas o começo… Amanhã, até os moradores de Leblon e de Ipanema vão querer morar aqui! Em breve, prometeu, haverá um centro de artesanato e serviços comunitários, explorações agrícolas, uma fábrica de têxteis, uma padaria, escolas, uma creche, quadras de esporte, um cinema… e até uma piscina!

Para entender, em 20 de janeiro de 1964, era Carnaval fora de época.

Na euforia, para completar a homenagem, o governador pensou em ter um busto do presidente americano, Abraham Lincoln, esculpido e colocado na praça central, que seria chamado de Praça Miami. Mas ele encontraria algo melhor: No jardim da família Paranhos, ricos proprietários de terras da Zona Sul, estava uma réplica em miniatura da Estátua da Liberdade feita pela mão do escultor francês Frédéric Auguste Bartholdi – encomenda dos Paranhos para comemorar o décimo ano da proclamação da República do Brasil.

Quando os técnicos americanos voltaram dois anos depois, em 1966, descobriram que nenhuma das obras prometidas haviam sido realizadas… e que, embora a estátua ainda estivesse na Praça Miami, o ideal da democracia e da liberdade que ela simbolizava não era mais válido: os militares derrubaram a República… “para frear o avanço do comunismo”. Dessa vez, Izadora não teve muitas dúvidas sobre a opinião do Professor Costa.

A ditadura durou até 1985. A República voltou. A manutenção do grande complexo não mudou: No meio da Avenida Brasil, instalada na van, os ouvidos cheios de putaquepariu de Edilson – xingando contra o fluxo de carros que não andam, contra o destino, sobretudo – mãos tensas sobre os joelhos, o mar nunca pareceu tão distante para Izadora.  

A possibilidade de outro futuro também.

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Sobre o autor

Walid Hajar Rachedi
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Co-fundador de Frictions e Diretor de Publicação. Sou um autor e especialista em digital. E um globetrotter incurável. Já vivi em várias cidades estrangeiras. Eu falo cinco idiomas. E o melhor presente que posso receber é uma boa história.

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